Histórico

      David Nascimento

       Riqueza de cores

    “Ou encontramos uma forma ou a inventaremos”, disse o
célebre general cartaginense Aníbal (247 – 183 a.C.), em sua campanha contra os
romanos. A máxima não vale apenas para o universo dos combates militares, mas
também para o mundo da arte, principalmente quando nos defrontamos com os
quadros do artista plástico David Nascimento.

    Nascido em Salvador, Estado da Bahia, em 22 de dezembro de 1952,
Nascimento é um pintor autodidata que sempre busca ler sobre a história dos
mestres, colocando entre seus preferidos Renoir, um dos principais
impressionistas, e Paul Klee, artista em que é possível encontrar
experimentações surrealistas e intensos jogos cromáticos.

     Tamanha variedade de influências cristaliza-se num trabalho de cunho
popular que tem as suas origens na infância do artista. Quando criança,
Nascimento era obcecado por desenhar. Se isso não trazia problemas em casa, a
realidade era muito diferente na escola, pois ele ficava desenhando durante as
mais variadas explicações da professora até que seu caderno não tivesse espaço
em branco sobrando.

 A penalidade por essa atitude era, muitas vezes, ficar de castigo, de pé ou de
joelhos, com a cara contra a parede. Como ele permanecia quieto, a mestre
desconfiou e logo percebeu por quê: o menino continuava rabiscando na parede. O
fato lhe valeu uma suspensão.

 Mas o amor à pintura também trouxe alguns êxitos, como ter ganho a primeira
paleta de tinta guache num concurso de desenho. Além disso, com 11 anos,
Nascimento aprendeu a fazer um tipo de cinema com caixote e lâmpada dentro, mas
ele tinha que pintar as imagens para que o resultado ficasse interessante. Isso
o obrigou a desenhar muito – o que constituiu um ótimo treino para aperfeiçoar o
próprio desenho.

 Dois anos depois, o futuro artista profissional – que já desenhava e pintava
com guache – começou a cobrar alguns trocados daqueles que se interessavam pelos
seus trabalhos. Dessa época, Nascimento lembra ainda com carinho de uma
professora de desenho que o chamava de “colega”, prevendo que o futuro
dele seria viver da arte. Ainda nessa época de formação, as calçadas dos
vizinhos eram as telas em que fazia desenhos de cowboys ou batuqueiros a carvão
ou com giz.

 O artista baiano lembra ainda de seu primeiro quadro, realizado aos 15 anos, com
esmalte sintético sobre compensado, no qual mostrava um batuqueiro com uma
baiana. Esse foi o primeiro quadro vendido pelo jovem artista, pelo qual,
infelizmente, não recebeu pagamento algum.

  Após trabalhar durante dois anos no balcão de uma farmácia, Nascimento foi
chamado pelo exército. Para não ser designado para o serviço de limpeza, tinha
que mostrar alguma habilidade especial. Optou pelos dotes naturais para o
desenho e logo conseguiu se fixar nas atividades de desenhista letrista e
cartunista.

Ao dar baixa do serviço militar, Nascimento já traçara, portanto, seu caminho
profissional. Em 1974, viaja para o Rio de Janeiro, onde trabalha na área de
publicidade, criando logo marcas e letreiros, além de pintar painéis, murais e
cenários para peças de teatro. Entre essas atividades, buscava conseguir tempo
para pintar quadros, óleos sobre tela, com temas figurativos, e participar de
exposições.

Em 1975, produziu uma série de orixás, que resultaram numa exposição individual.
O tema era muito familiar ao artista, pois fora criado vizinho a um dos mais
famosos terreiros da Bahia. Isso não só habituou o seu ouvido ao som dos
atabaques e à visão das filhas de santo dançando com as indumentárias dos
orixás, mas também lhe deu a possibilidade de caminhar livremente pelas
dependências do local em que eram realizados os ritos, absorvendo o significado,
a simbologia e as tonalidades das vestimentas.

Com o advento da informatização no mundo gráfico, Nascimento começa a dar novos
passos, dedicando-se inteiramente à pintura. Em 1981, retorna para Salvador,
onde fixa residência e se volta para a pintura a óleo e, depois, à acrílica
sobre tela, técnica com a qual se adapta muito bem.

A progressiva maior dedicação à arte leva Nascimento a conhecer artistas do
centro histórico de Salvador e a participar da Associação dos Pintores
Populares, vinculando-se aos naïfs locais. Em conseqüência, passa a expor com
maior regularidade, mantendo até 1990, quase exclusivamente o tema
afro-brasileiro.

 O artista baiano, posteriormente, passa a pintar favelas e outros temas
regionais. A partir de 2000, motivado por uma necessidade interna de criar
figuras com mais movimento, começou a realizar experimentações próximas ao
cubismo. Temas como figuras humanas, casarios e naturezas mortas são tratados em
cores quentes, com traços geralmente fortes e definidos. Em alguns trabalhos, o
referencial concreto chega a ficar mais distante, mas ainda não foi dado um
passo decisivo rumo à arte abstrata.

 David Nascimento atinge um de seus melhores resultados com as favelas. A mistura
de formas, cores, pessoas e roupas estendidas nos varais fornece uma rica
matéria-prima para o pintor, que também registra momentos cotidianos da vida nos
morros, como cenas de paquera ou de crianças brincando.

Nascimento, que também realiza ilustrações para capas de livros didáticos e
obras do escritor Magela Cantalice, da Academia Paraibana de Letras, programação
visual e decoração de eventos para centros de convenções da Bahia, Rio de
Janeiro, São Paulo, Brasília, Recife e Fortaleza, apresenta, em sua obra
pictórica, o universo popular sob óticas diferenciadas, ora mais realistas, ora
com pinceladas em que as cores e formas ganham relevância.     

 Em busca de traços cada vez mais amplos e da criação de atmosferas diáfanas, as
imagens de David Nascimento, sejam pinturas a óleo ou aquarelas, revelam
expressividade, obtida, principalmente, pela forma como o artista trabalha com a
cor. Suas favelas ou cidades, vistas a distância, ganham a intensidade rítmica
de figuras de candomblé em movimento.

O resultado é uma arte portadora de uma magia toda especial, fruto do constante
hábito de observar a realidade mesclado com uma constante busca por
aperfeiçoamento técnico. Por isso, assim como o general Aníbal, o artista baiano
não se abate com dificuldades, sempre pronto a encontrar ou inventar formas de
extravasar o seu talento.

 

Oscar D’Ambrosio, jornalista, integra a Associação Internacional de Críticos de
Arte (Aica) e é autor de Os pincéis de Deus: vida e obra do pintor naïf
Waldomiro de Deus (Editora Unesp).